Educar Cultivar Libertar

Friday, October 20, 2006

Pensar e Viver


Aprender a pensar bem é preciso. Aprender a ser um pensador responsável, cuja característica essencial é a capacidade de formular bons juízos, é imprescindível para se poder orientar a vida de uma forma mais criteriosa. Mas isso é possível? Como fazer para aprender e ensinar a pensar bem? Essa deveria ser uma das principais preocupações de todo educador e, enquanto professora de Filosofia, sempre foi o meu maior desafio. O caminho mais promissor que encontrei para enfrentar tal problema é o desenvolvimento do projeto educacional que podemos entrever no Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Por quê? Bem, porque esse é um programa que tem como um dos objetivos norteadores justamente o exercício do pensar, visando sua competência e autonomia, ou seja, a sua excelência. O conjunto da teoria de Lipman a respeito da educação repousa sobre os seguintes pressupostos: 1) os objetivos da escola devem estar voltados para o desenvolvimento do pensamento; 2) o pensar é passível de ser desenvolvido em direção a sua excelência, quando submetido à investigação filosófica e exercitado na prática dessa investigação em comunidade; pensar bem é não só uma característica da prática filosófica como também um resultado dela. A partir desses pressupostos, Lipman elaborou uma proposta educacional que permite envolver alunos e professores em diálogos investigativos de caráter filosófico.

Aqui, pretendo discutir alguns dos aspectos das relações que Lipman estabelece entre o pensamento e a prática filosófica, orientando-me pela análise mais aproximada dessas noções. O processo do pensamento é próprio da "natureza humana", ou seja, o homem naturalmente pensa. Porém, segundo Lipman, isto não pode significar que tal processo não tenha condições de ser aperfeiçoado por meio de procedimentos adequados. Desse modo, em sua obra O Pensar na Educação, observamos ser um de seus objetivos especificar os elementos que podem ser considerados como componentes constitutivos do pensar excelente, ou de ordem superior, e quais são as condições de possibilidade de seu desenvolvimento.

Trata-se de uma abordagem normativa e não descritiva, ou seja, que enfoca o pensamento sob o ponto de vista de como deveria ser e não de como ele de fato ocorre; a discussão sobre o pensamento comum tem seu lugar apenas em função de uma possível distinção avaliativa em confronto com a excelência do pensar.

O pensar excelente, de ordem elevada, é caracterizado como uma associação dos aspectos crítico e criativo do pensamento, que precisam ser entendidos como aspectos que se complementam no ato de pensar bem; além disso, o pensar excelente é o que avalia seu próprio desempenho. Nas palavras de Lipman:

"Pensamento complexo inclui o pensamento recursivo, o pensamento metacognitivo, o pensar autocorretivo, e todas aquelas formas de pensamento que envolvem a reflexão sobre sua própria metodologia, enquanto examinam, ao mesmo tempo, seu tema principal."

Lipman aponta para a discussão detalhada dos aspectos crítico e criativo nas partes II e III da obra acima mencionada. Vejamos como ele os caracteriza.

A definição de pensamento crítico está baseada em sua funcionalidade , pois ela se anuncia atrelada aos produtos ou conseqüências dessa modalidade do pensar que são os bons juízos. Por essa razão, precisamos examinar qual é a possível relação entre a faculdade de julgar e a qualidade do pensamento crítico. Para Lipman, é crítico o pensamento que possibilita a formulação de bons juízos porque se fundamenta em critérios, é autocorretivo, e considera o contexto.

O autor associa os termos crítico e critério por terem ambos uma etimologia comum. E relaciona critérios com juízos porque os primeiros podem ser definidos como princípios utilizados para o ajuizamento. O pensar crítico é habilidoso e não pode ter seu desempenho avaliado sem a concorrência de critérios para tanto. Por isso, o pensar crítico é aquele que se pauta por critérios e que busca critérios para sua própria apreciação, isto é, está constantemente buscando a correção de suas falhas, tendo como orientação metodológica máxima (megacritério) a busca da verdade. Desse modo, ele pode ser considerado um pensar que se apóia em fundamentos, tem uma estrutura e também recursos que lhe conferem força para sua defesa e autocorreção.

Lipman inicia sua reflexão sobre o pensar criativo comparando-o com as características do pensar crítico. Evidentemente, busca esclarecer que não concebe o pensar criativo como oposto ou contendo elementos distintos do pensar crítico. Para ele, a diferença se encontra na maneira como os dois aspectos, ou componentes do pensar excelente, estão oganizados porque o pensar criativo conduz ao ajuizamento, é orientado pelo contexto, é autotranscendente, e sensível a critérios contrastantes.

Na seqüência dessa definição, Lipman nos apresenta o seguinte quadro:

Pensar Crítico:

a) tem como megacritério a verdade
b) conduz ao juízo
c) é orientado por critérios singulares
d) é autocorretivo
e) é sensível ao contexto


Pensar Criativo:

a) tem como megacritério o significado
b) conduz ao juízo
c) é sensível a critérios contrastantes
d) é autotranscendente
e) é orientado pelo contexto (holístico)

É importante observar que a comparação entre as definições não determina um contraste, ou seja, não significa que o pensamento criativo não seja sensível à verdade, livre de juízos críticos ou que ele seja irracional. O que o autor pretende com essa contraposição é ressaltar as características principais de dois aspectos de um mesmo ato, isto é, o ato de pensar bem. Não podemos compreender essas noções como duas ocorrências estanques, pois elas configuram duas instâncias do processo do pensamento.

De qualquer modo, para compreender o pensar criativo, um caminho seguro é examinar de perto o fato de que ele é orientado pelo contexto, enquanto o pensar crítico é sensível ao contexto. O que essa diferença pode significar? Lipman estabelece a seguinte comparação:

"Podemos esperar que o pensar crítico e o criativo sejam orientados pela qualidade universal da situação específica da investigação e sejam sensíveis ao perfil e configuração daquela situação. Mas o pensar crítico fará isto buscando critérios e conceitos através dos quais possa orientar o rumo da investigação. O pensar criativo, por outro lado, será sensível à maneira como a qualidade universal incorpora valores e significados e estará nas mãos de poderosos esquemas que tentarão fazer com que o pensar siga por esta ou aquela direção."

O pensar criativo se organiza na perspectiva dos significados que qualificam as situações investigativas, surgindo na tensão que se estabelece no contraste entre os critérios, orientando-se em direção a sínteses criativas, procurando transcender a si mesmo por meio da autocrítica que é parte constitutiva do processo de investigação. Criatividade e racionalidade são partes integrantes do processo do bom pensamento; em outras palavras, são os eixos do pensar de ordem superior.

A partir dessas considerações, podemos refletir um pouco sobre as características da prática filosófica proposta por Lipman. Antes de mais nada, não devemos confundi-la com a filosofia árida como é comumente vista nas universidades, pois "a filosofia para crianças é uma intervenção que objetiva conseguir com que os próprios alunos filosofem". Isto porque, para Lipman, pensar filosoficamente implica aprender a pensar sobre um assunto de tal forma que, simultaneamente, aprende-se a pensar autocrítica e autocorretivamente sobre o próprio processo de pensar. Em outras palavras, a filosofia nos conduz a um pensamento constantemente investigativo, pois ela é "investigação conceitual, que é a investigação na sua forma mais pura e essencial", ela se constitui tradicionalmente como a genuína busca da verdade.

Quando abordamos o pensamento nessa perspectiva, não podemos considerar qualquer pensamento como pensamento. Pensar filosoficamente é ter o "raciocínio guiado pelo ideal de racionalidade, e isto, para o filósofo, não é meramente pensamento, mas pensamento melhor". Para melhorar a qualidade do nosso pensamento e a de nossos alunos, é preciso desenvolver um pensar desse tipo e, para tanto, é necessário promovê-lo em comunidade. Lipman nos orienta nessa direção:

"A filosofia impõe que a classe se converta numa comunidade de investigação, onde estudantes e professores possam conversar como pessoas e como membros da mesma comunidade; onde possam ler juntos, apossar-se de idéias conjuntamente, construir sobre as idéias dos outros; onde possam pensar independentemente, procurar razões para seus pontos de vista, explorar suas pressuposições; e possam trazer para suas vidas uma nova percepção de o que é descobrir, inventar, interpretar e criticar."

Um pensamento que se exercita desse modo exige a presença dos aspectos crítico e criativo, o que me parece permitir a conclusão de que o pensar filosófico coincide com o bem pensar e legitima a proposta de envolver alunos e professores nesse tipo de exercício.

0 Comments:

Post a Comment

<< Home