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Friday, October 20, 2006

Entrevista a Desidério Murcho - Ensinar a Pensar



Ensinar a pensar
André Barata
Desidério Murcho coordena, com João Branquinho, a edição desta primeira "Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos". Uma obra precursora que dá a conhecer ao público português a linguagem com que hoje em dia se escreve e discute Filosofia.
Jovem filósofo, tradutor e articulista, 36 anos, Desidério Murcho é autor de um considerável conjunto de artigos no domínio dos estudos lógico-filosóficos. Destaca-se, porém, o seu excepcional trabalho na divulgação e promoção de uma maneira de fazer Filosofia que vai ganhando adeptos e apoio institucional em Portugal: a que aposta na vertente analítica, no trabalho em comunidade e no rigor lógico e argumentativo.
E fá-lo em diferentes frentes: co-dirigindo a colecção "Filosofia Aberta" da Gradiva, editando a revista "Disputatio", bem como mantendo um "site" de qualidade reconhecida, a "Crítica", onde é possível discutir Filosofia agradável e seriamente. "Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos", coordenada em parceria com João Branquinho, é o seu mais recente trabalho, coligindo contributos de uma vasta equipa de investigadores.
Qual é o papel desta enciclopédia para os estudos filosóficos em Portugal?
É importante por vários motivos. Trata-se de um esforço interdisciplinar, que envolveu pessoas com formações diferenciadas: linguistas, matemáticos, especialistas em teoria da computação, além de filósofos. É uma obra que procura divulgar a Filosofia contemporânea mais recente, em Portugal infelizmente quase de todo desconhecida. Em terceiro lugar, reúne especialistas nacionais e estrangeiros.
Há objectivos a alcançar?
Estão ligados aos três aspectos que destaquei. Um dos objectivos é procurar que a comunidade filosófica portuguesa se integre naturalmente na comunidade filosófica internacional. Depois, tornar conhecida uma área da Filosofia contemporânea quase desconhecida no nosso país e também abrir a possibilidade de um trabalho de cooperação interdisciplinar.
Existe uma certa opção filosófica que se reconhece e se quer reconhecível neste livro, quando fala de Filosofia contemporânea, uma opção pela Filosofia de tradição analítica, ou, como bem expressa o título, lógico-filosófica. O que é que essa opção traz de novo para os investigadores e para os estudantes?
Se a Filosofia contemporânea no seu todo é pouco estudada em Portugal, a analítica é um universo por descobrir. Esta enciclopédia pode ajudar a desvendá-lo, mas apenas no que respeita aos estudos lógico-filosóficos. Mesmo deixando de fora a ética, a estética, a Filosofia da religião e a Filosofia política, o livro já é enorme! Seria excelente, se surgissem outras obras deste género que dessem a conhecer essas áreas que tivemos de deixar de fora.
Que temas foram contemplados?
Os estudos lógico-filosóficos englobam um conjunto relativamente heterogéneo de problemas filosóficos que cortam diagonalmente várias disciplinas: Filosofia da Linguagem, Filosofia da Lógica, Lógica Filosófica, Metafísica e Epistemologia são algumas das mais óbvias. O que unifica a área é um uso intenso de instrumentos lógicos.
Em que medida esses instrumentos podem ter aplicação em áreas como a Metafísica ou a Epistemologia?
No caso da Metafísica, desde a fundação da disciplina, com Aristóteles, que a lógica sempre desempenhou um papel importante. Por exemplo, na discussão dos problemas da identidade (serei hoje a mesma pessoa que era há 20 anos?) ou na discussão dos problemas levantados pelo pensamento modal (o que significa dizer que eu poderia não ter nascido?). No caso da Epistemologia, temos um problema de carácter lógico no que respeita à indução: como podemos explicar este tipo de raciocínio? Em ambos os casos, a lógica ajuda-nos a encontrar melhores respostas, a refinar teorias e a discutir argumentos.
Como vê o trabalho interdisciplinar na Filosofia?
A Filosofia é um lugar por excelência de interdisciplinaridade. Aliás, penso que um dos problemas que temos na cultura portuguesa é uma certa incapacidade para ver a floresta, porque o sistema de ensino está vocacionado para fazer as pessoas repetirem sem pensar uma lista de coisas sobre as árvores. Sempre que começamos a discutir as grandes ideias, os grandes problemas, percebemos que precisamos de convocar várias áreas.
Quer dizer que o nosso ensino se baseia na erudição e na memória, em vez de ensinar a pensar?
Infelizmente, isso é verdade. E é isso que explica a relativa inexistência de grandes artistas, cientistas ou filósofos portugueses. Não porque os jovens sejam menos inteligentes ou talentosos do que os seus colegas dos outros países, mas porque em Portugal os talentosos são afastados do sistema de ensino e da cultura, em vez de serem estimulados.
Nos últimos anos, o ensino da Filosofia em Portugal tem prestado maior atenção à Filosofia Analítica, em contraste com um mero ensino de História da Filosofia dominante até há bem pouco tempo. Considera possível conciliar abordagens tão diferentes?
Há duas coisas completamente diferentes: a Filosofia e o ensino da Filosofia. E, no que respeita ao ensino, tanto faz ela ser analítica ou não. Se for um ensino de qualidade, tem de dar ao estudante a capacidade para pensar por si mesmo e para ter uma atitude crítica em relação às ideias dos filósofos. Limitarmo-nos a repetir o que disse Quine é tão tolo como limitarmo-nos a repetir o que disse Heidegger.
Em todo o caso, parece estar em jogo a própria maneira de fazer Filosofia, uma metodologia mais científica em contraste com uma produção de tom literário: a primeira, seguindo o modelo do artigo pequeno com muita análise lógica; a segunda, fazendo-se com ensaios longos, em regra, de teor hermenêutico. Duas maneiras tão distintas podem ser ambas Filosofia?
Basta ler a obra de Nagel, Nozick, Swinburne ou Singer para perceber que não é uma "metodologia científica" o que caracteriza a Filosofia analítica. Por outro lado, a Filosofia tem sido tanta coisa ao longo dos séculos que me parece inútil saber o que ela realmente é. O que é realmente a arte? O que é realmente a ciência? Neste momento, em Portugal, o que interessa é criar condições para que os nossos estudantes mais talentosos possam desenvolver a Filosofia no nosso país, seja ela qual for, desde que seja de qualidade, aberta à discussão e em contacto com o que se faz no resto do mundo.
Nesta obra apostou-se em autores portugueses, sobretudo jovens filósofos que se encontram ainda a preparar estudos doutorais e de mestrado. Podemos falar de uma nova escola de Filosofia?
Há a tentativa de constituir uma comunidade, condição sem a qual não pode haver estudo sério em nenhuma área. Mas não há qualquer escola. Os autores desta enciclopédia têm orientações muito diversificadas. A propósito, há uma grande injustiça que gostava de reparar: Francisco Gonçalves ajudou-nos muito na fase de compilação de artigos, e o seu nome não é referido no prefácio.
Paralelamente a esta obra, Desidério Murcho tem desenvolvido um intenso trabalho de divulgação e promoção da Filosofia através da criação de diversos "sites" de qualidade. Que resultados tem tido?
Surpreendentes. Ao contrário do que os nossos simpáticos publicistas nos querem fazer crer, o mundo não é só feito de pessoas tolas que bebem Coca-Cola e aspiram a comprar um BMW. Há também pessoas que gostam de discutir ideias, estudar e conhecer melhor este pedaço de universo em que por acaso nos encontramos. A "Crítica" recebe mais de mil visitas por semana, o que é impressionante, se tivermos em conta que se trata de um "site" não comercial, em língua portuguesa e dedicado sobretudo à Filosofia.

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