Educar Cultivar Libertar

Sunday, October 22, 2006

O CARINHO À SABEDORIA

O primeiro equívoco da educação passa por nos imaginar, a todos, aprendendo da mesma forma, reprimindo-nos sempre que tentamos compreender de outra maneira, esquecendo que tudo o que nos motiva para aprender é a motivação dos mais crescidos para reconhecer o que nos distingue uns dos outros, muito mais do que aquilo que compartilhamos de comum, com eles.

O segundo equívoco da educação reside na forma como nos premeia, ao repetirmos. E nos castiga, se copiarmos. Dentro do mau, copiar é menos mau que repetir. Copiar acaba por representar uma insubordinação contra a repetição. Enquanto repetir é a assunção submissa, de uma cópia. Quer dizer, repetir é o contrário de aprender.

O terceiro equívoco da educação passa pela ideia que os mais velhos cumpre educar os mais novos. Não é verdade que seja assim. Educação é reciprocidade. Os mais novos só aprendem aquilo que já sabem. A escola torna mais simples e mais exequível tudo o que já sabem e, só por isso, o seu pensamento se abre para níveis de complexidade maiores. Os mais velhos só aprendem quando aceitam que, para educar os outros, é necessário, em primeiro lugar, aprender com eles. E isso só é possível quando, nas intenções da educação, a aquisição de conhecimentos for substituída pelo carinho à sabedoria.

O quarto passa pelo pressuposto de que educar se faz de bons conselhos e de soluções adequadas quando, em rigor, a educação é tudo o que se os bons exemplos são capazes de nos dar. Os exemplos de boa educação dos pais e dos professores são mais preciosos do que a educação cívica, os exemplos de respeito pela higiene sanitária ou pela saúde alimentar na escola são mais importantes do que a educação para a saúde, e os exemplos de utilidade de um conhecimento são mais importantes do que a demonstração cientifica que se faça a partir dele.

O quinto, finalmente, passa pela ideia de que a educação serve para ganhar a vida. Não é verdade. A educação serve para viver mais ousadamente com a ideia de morte (sem que, todavia, se fuja à sua presença organizadora na relação com a vida). E só se ganha a vida quando se descobre que a primeira função de quem gosta de nós não é tirar-nos dúvidas mas pôr-nos problemas, não é dar-nos respostas, mas encaminhar-nos pelas dúvidas, não é estimular a hipocrisia mas estimar a verdade.

Tenho dito que a escola foi a invenção mais bonita da humanidade, e que a educação para todos foi a maior (e mais tranquila) de todas as revoluções. E será ainda mais bonita e revolucionária se promover a diversidade e a criatividade, a reciprocidade e os bons exemplos, a formação humana e as relações que, entre as dúvidas e as perguntas, acarinham a sabedoria.

Eduardo Sá, Revista Noticias Magazine – 22 de Setembro de 2006

Friday, October 20, 2006

É o sucesso escolar incompatível com a criatividade?

Qualquer ensino de qualidade da filosofia (assim como de outras disciplinas) tem de fazer pensar. Tem de estimular o estudante a tomar posição, a dar os primeiros passos hesitantes na tarefa de filosofar. E não há maneira de aprender a filosofar senão praticando — de forma incipiente, a princípio, mas com maior sofisticação à medida que progride o estudo e a própria maturidade do estudante. Isto significa que estudar filosofia não é uma questão de aprender a repetir as ideias filosóficas alheias, mas uma questão de aprender a pensar filosoficamente por si. Contudo, este tipo de abordagem levanta perplexidades quando se procura aplicá-la na realidade diária do professor, fazendo testes e exercícios, avaliando estudantes e leccionando matérias. As duas perplexidades principais são as seguintes: 1) Como se faz tal coisa na prática? 2) Não é esta abordagem apropriada unicamente para as melhores turmas, sendo impossível de aplicar a estudantes mais fracos? Este artigo tem por objectivo responder a estas duas perplexidades.
É verdade que grande parte das conversas muito teóricas e abstractas sobre o ensino acabam por se revelar inaplicáveis na prática, sobretudo a nível da avaliação. Não é por isso surpreendente que se aceite esta conversa acerca da importância de fazer os estudantes filosofar, ao mesmo tempo que as práticas diárias do professor contradizem esta conversa. Assim, temos a seguinte situação surpreendente: todos os professores concordam que a filosofia é uma actividade crítica e "o lugar crítico da razão". Mas, quando chega a hora da prática, tanto a maior parte dos manuais como a prática diária dos professores consiste apenas em ensinar os estudantes a compreender as teorias, argumentos e ideias dos filósofos estudados, como se filosofar fosse algo privado e subjectivo, que o estudante vai diligentemente fazer, no conforto do seu lar, depois de ter compreendido correctamente as matérias. O resultado desta abordagem é desastroso: os estudantes não aprendem a inovar, a pensar por si, a investigar — a ponto de, nas universidades e centros de investigação se chamar "investigação" ao que não passa, na verdade, de estudos que sistematizam e exibem uma certa compreensão dos problemas, teorias e argumentos da filosofia, mas nenhum pensamento inovador e original. O resultado a nível do desenvolvimento do país é desastroso, sendo uma das razões do atraso económico crónico do país — como os problemas do país não estão resolvidos em nenhum manual escolar e como o cérebro nacional não foi formado no pensamento autónomo, falta a criatividade necessária para resolver os problemas reais do país, nas suas diversas áreas (incluindo a área do ensino da filosofia).
Repare-se na diferença das duas perguntas seguintes:
1. Explique qual é a teoria tripartida do conhecimento e as dificuldades que esta teoria enfrenta.
2. Concorda com a teoria tripartida do conhecimento? Porquê?
No primeiro caso, estamos apenas a exigir ao estudante que repita correctamente o que estudou. Se o fizer correctamente, estará a mostrar que compreendeu o que estudou. No segundo caso, estamos a fazer mais do que isso: estamos igualmente a estimular o estudante a pensar por si mesmo, tomando uma posição. É assim que se procede no ensino criativo da filosofia (ou de qualquer outra área): concebem-se perguntas que não apenas permitam mas estimulem positivamente o estudante a pensar por si mesmo. Evidentemente, para que se possa na fase da avaliação apresentar este tipo de perguntas aos estudantes, é necessário que na fase da leccionação os estudantes tenham sido amplamente estimulados a pensar por si, a tomar posição, a levantar objecções e contra-exemplos, etc. Neste tipo de ensino, o estudante não fica impávido e sereno todo o tempo a absorver a filosofia já feita e pronta a consumir. Neste tipo de ensino, o professor sistematiza e dá a compreender de forma tão clara e rigorosa quanto possível os problemas, teorias e argumentos da filosofia, mas ao mesmo tempo chama os estudantes a pensar por si mesmos, criticamente, no que está a ser estudado.
A dificuldade que este tipo de ensino levanta é a seguinte: como é evidente, nem todos os estudantes são criativos, nem todos têm a capacidade para pensar por si mesmos. Os estudantes mais fracos têm até dificuldade em explicar correctamente a teoria tripartida do conhecimento, quanto mais tomar uma posição reflectida e articulada sobre a teoria! Que fazer?
Esta dificuldade é séria e revela o tipo de falso dilema em que o sistema de ensino português tem estado mergulhado. O falso dilema é este: ou ensinamos os estudantes a compreender as matérias de forma mais ou menos cinzenta, mas sem erros, e asseguramos um certo sucesso escolar (no sentido em que não chumbam a maior parte dos estudantes); ou somos muito idealistas e queremos um ensino criativo, no qual os estudantes são chamados a pensar por si, mas provocamos um enorme insucesso escolar porque a maior parte dos estudantes não tem capacidade para o pensamento autónomo.
O dilema é falso porque pressupõe ser incompatível o que na realidade é complementar. Retomemos os exemplos das perguntas 1 e 2. A única diferença na grelha de correcção das duas perguntas é a seguinte: os elementos de autonomia e criatividade presentes na grelha de correcção da pergunta 2 estão ausentes da grelha de correcção da pergunta 1. Na pergunta 1, o estudante tem 100% desde que explique correctamente a teoria; na pergunta 2, o estudante tem apenas 69% se se limitar a explicar correctamente a teoria. Na pergunta 2, para ter mais de 69%, o estudante tem de pensar por si. Evidentemente, há diversos graus de qualidade no pensamento autónomo, o que se reflectirá na diferença das notas de 69% a 100%.
A preocupação que este tipo de ensino e avaliação provoca é a seguinte: imagine-se um estudante fraco. Com a pergunta 1, basta compreender a teoria para ter 100%. Assim, se esse estudante revela várias incompreensões, terá, digamos, 50%. Mas no caso da pergunta 2, o mesmo estudante, revelando o mesmo tipo de incompreensões, não terá 50%, mas, digamos, 30% — porque para ter 100% se exige muito mais do que compreender apenas a teoria. Ora, isto significa que se enveredarmos por esta prática de ensino que visa estimular a autonomia intelectual, o insucesso escolar será dantesco. Logo, esta prática é muito bonita na teoria, mas é impraticável, excepto talvez em algumas turmas melhores.
Esta é uma preocupação real, mas que felizmente tem uma resposta simples. A resposta é que a escala de valores não é tal que o estudante teria apenas 30%. O estudante mais fraco teria 50%, tal como na primeira pergunta. A título de exemplo, veja-se a grelha de valores usada no King's College London para estudantes de licenciatura:
90-100 Candidate produces truly excellent and insightful work, of publishable quality, and it is hard to se how more could have been demanded within the constraints of the task.
80-89 Candidate displays striking insight originality and analytical skill, far outweighing any minor shortcomings or possibilities for improvement.
70-79 Candidate shows excellence in knowledge and presentation of relevant material and some originality of thought.
60-69 Candidate writes clearly, shows good broad knowledge, is aware of issues but lacks originality.
50-59 Candidate shows fair overall knowledge, is aware of most main issues and normally attempts to address them.
40-49 Candidate shows some broad or some specific knowledge but weak grasp of issues, and poor presentation.
30-39 Candidate has enough knowledge to attempt to answer the question, but does so in a very poor way.
20-29 Candidate answers only part of the question and that in a barely adequate fashion.
10-19 Candidate attempts an answer but this is deeply flawed, irrelevant or unacceptably brief, giving little evidence of any real knowledge of the relevant material.
0-9 Candidate produces nothing that can be counted as an attempt to answer the question; any content to the essay is completely irrelevant or unintelligible.
Fonte: http://www.kcl.ac.uk/kis/schools/hums/philosophy/frames/UG/NUGhandbook.html#90

Neste tipo de escala, os estudantes mais fracos têm amplo espaço para ter aproveitamento. (Note-se que basta ter 40%, nesta escala, para ter aproveitamento.) Evidentemente, esta é uma escala para o ensino superior, e para uma universidade em particular; para o ensino secundário português será necessário adaptar este tipo de escala, de acordo com o facto de se tratar de ensino secundário e de acordo como facto de o ensino português estar muito atrasado. Mas qualquer escala que não estimule a autonomia intelectual do estudante será profundamente deficiente e deformadora.
O que uma escala deste género significa é que basta o estudante exibir uma certa compreensão da teoria tripartida do conhecimento, ainda que com algumas deficiências de pormenor, para ter aproveitamento; mas para ter notas superiores a 69% terá de mostrar alguma autonomia intelectual.
Vejamos agora o que acontece quando adoptamos um ensino baseado em perguntas do género da 1. Para lá do facto grave de neste tipo de ensino não se estar a fazer o fundamental — ensinar a filosofar —, acresce que há a tendência para entrar em pormenores bizantinos para impedir o estudante de ter 100%. Isto porque se sente, e com razão, que um estudante que explica muitíssimo bem a teoria tripartida do conhecimento não é ainda um estudante a quem se possa dar 100%. Esta ideia vaga materializa-se na procura de erros de pormenor irrelevantes, para descontar mais um ponto aqui, e mais outro ali, e por vezes até se desconta o que é irrelevante na disciplina de filosofia, como erros de gramática ou de ortografia — que é mais ou menos o mesmo do que descontar cinco segundos aos ciclistas da volta a Portugal por cada vez que dizem uma asneira na televisão. É verdade que um estudante que apenas sabe repetir o que estudou não merece 100%. Mas é desonesto andar à caça de pormenores para não lhe dar 100% quando a grelha e o ensino adoptado não lhe permitem qualquer originalidade que mereça realmente 100%. Assim, para que os estudantes tenham a possibilidade de ter 100% e para que 100% seja uma classificação verdadeiramente significativa, é necessário que o tipo de ensino e de grelhas de avaliação adoptadas tenham espaço para aquilo que, no fundo, é o verdadeiro objectivo do ensino: a autonomia intelectual do estudante.
Outra perplexidade relacionada com o ensino criativo é a seguinte: neste tipo de ensino, sabe-se que muitos estudantes irão responder a uma pergunta como 2 usando apenas as objecções que estudaram; adoptam, por assim dizer, as objecções que estudaram, e usam essas objecções para sustentar a sua posição, mas não há aqui um verdadeiro pensamento autónomo. Não é isto um problema? Afinal, ficamos numa situação de imitação do produto genuíno; o estudante faz suas as objecções e matérias estudadas, mas não vai mais longe do que isso.
Que este não é um problema vê-se pelo seguinte: em primeiro lugar, já seria muito bom que mais de 50% dos estudantes tivesse a capacidade para escolher, do que estudaram, as objecções que são relevantes para a pergunta em causa, ainda que fossem incapazes de pensamento autónomo. Em segundo lugar, não há aqui qualquer imitação do produto genuíno; um estudante que faz algo como isto, não tem mais de 69%. E é por isso mesmo que este método é compensador: porque está continuamente a estimular o estudante a ir mais além, quando ir mais além não é estudar durante mais horas ou decorar e compreender mais matérias, mas sim reflectir seriamente, pensar por si — filosofar, em suma.
Evidentemente, os estudantes com melhor acesso aos livros e à cultura vão rapidamente compreender que para ter mais de 69% terão de ir além dos manuais e das aulas, e poderão ser tentados a substituir a reflexão real pela leitura e compreensão de materiais complementares. Assim, um estudante poderá apresentar objecções à teoria tripartida do conhecimento que não foram estudadas e que não constam do manual; e o professor sente então que há um certo grau de injustiça porque esse estudante não está realmente a pensar por si — apenas alargou o leque de leituras. E poderá ter exactamente a mesma classificação do que o estudante que realmente descobriu por si o que o outro só conseguiu articular porque leu algures.
Que isto provoca uma certa injustiça é verdade. Mas não parece que seja nem muito grave nem susceptível de ser eliminada a nível do ensino secundário. E, por outro lado, tem aspectos muito positivos. Vejamos: é sem dúvida positivo que os estudantes comecem a perceber que precisam de procurar outros materiais além do que lhes é dado à colher nas aulas e no manual. Isso é, em si, parte fundamental da autonomia intelectual. Claro que repetir o que se leu algures, mas não no manual, não é ainda criatividade filosófica; mas revela já, sem dúvida, um dinamismo diferente do estudante que se limita a repetir o que está no manual. Que o professor nem sempre consiga distinguir este tipo de dinamismo da verdadeira criatividade filosófica é inevitável; porque nem podemos pressupor que o professor sabe tudo, nem podemos ter a ingenuidade de pensar que é possível distinguir num teste escrito ou até oralmente as seguintes duas situações: 1) o estudante descobriu algo por si mas é, por coincidência, o que um certo filósofo também defende, sem que o estudante o saiba; e 2) o estudante nada descobriu por si, limitou-se a alargar as suas leituras e descobriu um livro com um argumento ou ideia que depois pôde usar para responder.
Em conclusão: o pior que pode acontecer neste tipo de ensino e avaliação é um estudante genuinamente criativo obter a mesma classificação do que um estudante que não é criativo, mas foi beber a outras fontes o necessário para parecer criativo. A nível do ensino secundário, é inevitável que isto aconteça por vezes e os ganhos que se obtém são muito superiores a esta injustiça relativa.
Assim, o sucesso escolar não é incompatível com a criatividade. O estudante terá uma classificação positiva desde que compreenda os elementos centrais sob avaliação; mas não ultrapassa os 69% a menos que tenha a capacidade para pensar por si. Evidentemente, o tipo de originalidade que se espera encontrar é relativo. Não se trata de esperar que só um Kant de 15 anos possa ter 100%. Trata-se de estimular os estudantes a pensar por si, a inovar, a pensar criticamente, a ganhar autonomia intelectual aos poucos. Ao professor compete saber distinguir claramente os elementos centrais e fundamentais de cada área a leccionar, tendo em conta que é necessário espaço para o estudante "respirar", isto é, reflectir, amadurecer ideias. A probabilidade de encontrarmos estudantes a pensar por si no que foi leccionado é inversamente proporcional ao número de matérias e pormenores leccionados. É preferível o estudante contactar apenas com versões elementares e despidas dos pormenores mais técnicos dos argumentos a favor de Deus, por exemplo, deixando-lhe espaço para pensar por si, do que metralhar o estudante com tantos pormenores e tantas matérias que todo o esforço do estudante se esgota na compreensão do que é leccionado, ficando sem energia para tomar posição. Na verdade, uma das motivações mais óbvias para o aprofundamento do estudo seja do que for é o pensamento autónomo do estudante, que o leva a procurar ver se uma objecção que ele formulou por si não será de facto respondida em estudos mais profundos da área. Os pormenores e subtilezas são geralmente aborrecidos para o estudante; mas se o estudante sentir necessidade de estudar pormenores e subtilezas porque fez das matérias estudadas questões suas, teremos ganho uma das mais importantes batalhas do ensino: transmitir ao estudante o gosto de estudar e de pensar por si.

Desidério Murcho, Revista Critica On-Line


DISLEXIA E MAU LEITOR: AS DIFERENÇAS

Vicente MARTINS


Para psicólogos, psicólogos e educadores lingüistas um dos gargalos para o diagnostico e tratamento das dificuldades específicas de leitura, no ambiente escolar, reside na compreensão de conceitos básicos e operatórios como dislexia e mau leitor. Como saber a diferença que há entre o conceito de dislexia e dizer que uma criança é mau leitor?
A dislexia é uma síndrome de origem neurológica. Pode ser genética (desenvolvida) ou adquirida (depois de acidente vascular cerebral, a AVC). O disléxico é potencialmente um mau leitor, embora consiga ler. O disléxico lê, mas lê mal, sua leitura é lenta e sofrível. Só um neurologista, a rigor, tem a competência técnica, em equipe multidisciplinar, juntamente com psicólogos e pediatras, afirmar se uma criança é ou não disléxica.
A dislexia é, pois, uma síndrome para atendimento médico, embora não se trate de uma doença. Para os educadores, o que inclui pedagogos, psicopedagogos e profissionais de ensino, dislexia é uma dificuldade de aprendizagem de leitura ou mais precisamente o que entendemos por dislexia é uma dificuldade de aprendizagem de leitura (DAL). Venho denominado de dislectogenia essa dislexia dita pedagógica.
Assim, poderíamos dizer que todo disléxico é realmente um mau leitor, mas nem todo mau leitor é disléxico. Uma má leitura não deve ser uma pista final para o reconhecimento do mau leitor, mas é uma pista preciosa para o diagnóstico do disléxico.
Nos meus estudos, tenho levantado a hipótese de um déficit lingüístico para a dislexia, o que me levaria, ainda , por sua vez, a um tipo de dislexia ou dislectogenia, a pedagógica, responsável, no meu entender, pela maioria dos casos das chamadas dislexias, no meio escolar, resultado da dificuldade que o aluno tem, durante a leitura, de fazer a correspondência grafema-fonema, isto é, de entender que ler é um mistério, porque não consegue a correspondência adequada do grafema ou letra ao fonema ou som da fala.
É nesse caso, o pedagógico, que está, pois, o verdadeiro mau leitor, que deixa de fazer uma boa leitura porque aprendeu a ler mal, porque a metodologia de ensino de leitura(global ou sintético) foi mal aplicado.
Um exemplo bem típico de dislexia pedagógica ou lingüística pode ser percebido partir desse relato de dificuldades do filho feito por sua mãe.
Relata-me a mãe o seguinte: tem um filho de 5 anos. Seu pai é músico . Conta-me que seu filho aprende com muita facilidade músicas até a parte instrumental, mas tem muita dificuldade em apreender a escrever seu próprio. Quando tenta escrever o nome, segundo a mãe, escreve o U virado pra baixo o S ao contrario e sua fala já apresenta também dificuldades de ser compreendida pela própria família.
Ainda no relato, diz a mãe que a criança, antes, falava corretamente e, agora, apresenta dificuldades de fala e também costuma usar as duas mãos para fazer as atividades escolares. Às vezes utiliza a mão esquerda; outras, a direita, e tem muita dificuldade de apreender coisas simples, e sente muita “preguiça” a maioria das vezes para cumprir os deveres escolares. Pelo que lemos do relato, observamos que os sintomas de dificuldades de aprendizagem de lectoescrita (leitura e escrita) são de diversas ordens: distúrbios de rotação grafêmica (U virada pra baixo e S ao contrário) e de fala (incompreensiva).
A dislexia pedagógica acumula uma série de déficits que, claramente, afetam outras habilidades como fala, escrita e escuta. Aos 5 anos de idade, portanto, em processo de alfabetização, os métodos da escola parecem não atender às grandes expectativas dos pais quanto à alfabetização, o acesso ao código escrito, e ao letramento, isto é, aos usos sociais da escrita no cotidiano escolar.
Minha desconfiança, por exemplo, é que o método global, bem a gosto da maioria das escolas brasileiras, tem favorecido no Brasil o aumento de maus leitores.


Vicente Martins é professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú(UVA), de Sobral, Estado do Ceará, Brasil.
Aqui estão alguns sinais de alerta que pais e professores devem de ter em atenção quando suspeitam da existência de problemas nas competências de leitura e escrita nos seus filhos ou alunos:


DURANTE A INFÂNCIA:

l

Atraso na aquisição da linguagem. Começou a dizer as primeiras palavras mais tarde do que o habitual e a construir frases mais tardiamente.

Apresentou problemas de linguagem durante o seu desenvolvimento, dificuldades em pronunciar determinados sons, linguagem ‘abebezada’ para além do tempo normal.

Apresentou dificuldades em memorizar e acompanhar canções infantis e a rima das lenga-lengas.

Dificuldade em se aperceber que os sons das palavras podem dividir-se em bocados mais pequenos.

Entre muitos outros sinais (...).

NA IDADE ESCOLAR:
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l

Lentidão na aprendizagem dos mecanismos da leitura e escrita.

Erros por dificuldades na descodificação grafema-fonema. Dificuldade em compreender que as palavras se podem segmentar em sílabas e fonemas.

Bastantes dificuldades na leitura, com a presença constante de erros, inventando palavras ao ler um texto.

A velocidade da leitura é inadequada para a idade. Dificuldades na leitura de pseudopalavras.

Apresenta dificuldades na rima de palavras.

Escrita com muitos erros ortográficos e a qualidade da caligrafia é bastante deficiente.

Salta linhas durante a leitura, na leitura silenciosa consegue-se ouvir o que está a ler, acompanha a linha da leitura com o dedo.

Demora demasiado tempo na realização dos trabalhos de casa (uma hora de trabalho rende 10 minutos).

Utiliza estratégias e truques para não ler. Não revela qualquer prazer pela leitura.

Distrai-se com bastante facilidade perante qualquer estímulo, parecendo que está a "sonhar acordado".

Os resultados escolares não são condizentes com a sua capacidade intelectual.

Melhores resultados nas avaliações orais do que nas escritas.

Não gosta de ir à escola ou de realizar qualquer actividade com ela relacionada.

Confunde a direita e a esquerda.

Apresenta "picos de aprendizagem", nuns dias parece assimilar e compreender os conteúdos curriculares e noutros parece ter esquecido o que tinha aprendido anteriormente.

Apesar das dificuldades na escola revela ser bastante imaginativo e criativo, com um bom raciocínio lógico e abstracto, podendo evidenciar capacidades acima da média em determinadas áreas (desenho, pintura, música, teatro, desporto, etc.).

Entre muitos outros sinais (...).




Para se fazer um diagnóstico correcto da dislexia deve-se verificar inicialmente se na história familiar existem casos de dislexia ou de dificuldades de aprendizagem e se na história desenvolvimental da criança ocorreu um atraso na aquisição da linguagem.

Na leitura notam-se confusões de grafemas cuja correspondência fonética é próxima ou cuja forma é aproximada, bem como a existência de inversões, omissões, adições e substituições de letras e sílabas. Ao nível da frase, existe uma dificuldade nas pausas e no ritmo, bem como revelam uma análise compreensiva da informação lida muito deficitária (muitas dificuldades em compreender o que lêem).

Ao nível da produção escrita a sintomatologia é semelhante, verificando-se a presença de muitos erros ortográficos, grafia disforme e ilegível, como também lacunas na estruturação e sequênciação lógica das ideias, surgindo estas desordenadas.


As principais manifestações da dislexia nas competências de leitura e escrita são:


Um atraso na aquisição das competências da leitura e escrita.

Dificuldades acentuadas ao nível do processamento e consciência fonológica.

Leitura silábica, decifratória, hesitante, sem ritmo, com bastantes correcções e erros de antecipação.

Velocidade de leitura bastante lenta para a idade e para o nível escolar.

Omite ou adiciona letras e sílabas (ex: famosa-fama; casaco-casa; livro-livo; batata-bata; biblioteca/bioteca; ...).

Confusão entre letras, sílabas ou palavras com diferenças subtis de grafia ou de som (a-o; c-o; e-c; f-t; h-n; m-n; v-u; f-v; ch-j; p-t; v-z;…).

Confusão entre letras, sílabas ou palavras com grafia similar, mas com diferente orientação no espaço (b-d; d-p; b-q; d-q; a-e;…).

Inversões parciais ou totais de sílabas ou palavras (ai-ia; per-pré; fla-fal; me-em; sal-las; pla-pal; ra-ar;…).

Substituição de palavras por outras de estrutura similar, porém com significado diferente (saltou-salvou; cubido-bicudo;...).

Substituição de palavras inteiras por outras semanticamente vizinhas.

Problemas na compreensão semântica e na análise compreensiva de textos lidos.

Dificuldades em exprimir as suas ideias e pensamentos em palavras.

Dificuldades na memória auditiva imediata.

Ilegibilidade da escrita: letra rasurada, disforme e irregular, presença de muitos erros ortográficos e dificuldades ao nível da estruturação e sequenciação lógicas das ideias, surgindo estas desordenadas e sem nexo.

Entre muitos outros critérios de diagnóstico (...).

Outros sintomas que podem estar associados são:


Problemas ao nível da dominância lateral (lateralidade difusa, confunde a direita e esquerda, lateralidade cruzada).


Problemas ao nível da motricidade fina e do esquema corporal.


Problemas na percepção visuo-espacial.


Problemas na orientação espacio-temporal.


A escrita pode surgir em espelho.


Etc.


Nota: Não é necessário que estejam presentes todos estes indicadores em simultâneo, para que seja diagnosticada um caso de dislexia. Estes indicadores devem apenas alertar para a possibilidade de um possível caso de dislexia, já que é preciso compreender a razão destes comportamentos.


A dislexia está muitas vezes associada a outros termos e perturbações, como são o caso da Disortografia, Disgrafia e Discalculia:

DISORTOGRAFIA - Perturbação na produção escrita (presença de muitos erros ortográficos) caracterizada por uma dificuldade em escrever correctamente as palavras. É possível haver uma disortografia (erros ao nível da escrita) sem que esteja presente uma dislexia. Contudo, sempre que existe um diagnóstico de dislexia, tem como corolário uma disortografia mais ou menos evidente.

DISGRAFIA - Perturbação de tipo funcional que afecta a qualidade da escrita, sendo caracterizada por uma dificuldade na grafia, no traçado e na forma das letras e palavras, surgindo estas de forma irregular, disforme e rasurada.

DISCALCULIA - Perturbação semelhante à dislexia, sendo relativa a uma dificuldade na simbolização dos números e na capacidade aritmética. A discalculia pode ser definida como uma dificuldade específica da aprendizagem que afecta a normal aquisição das competências aritméticas apesar de uma inteligência normal, estabilidade emocional, oportunidades académicas e motivação.


Segundo vário autores, de entre os quais se destaca Debray, não se pode falar de dislexia (ou melhor, não se pode fazer um diagnóstico definitivo) antes dos 7 anos, ou para ser mais rigoroso antes de pelo menos um ano de escolaridade, pois anteriormente a esta idade, erros similares são banais pela sua frequência.

Quando a uma perturbação da leitura está associado um Q.I. elevado, a criança pode estar ao nível dos seus companheiros durante os primeiros anos escolares, e esta não se manifestar completamente antes do 4º ano de escolaridade, ou mesmo posteriormente.

Para um correcto diagnóstico de uma perturbação da leitura e escrita é indispensável recorrer à avaliação de profissionais experientes neste domínio, nomeadamente psicólogos, neurologistas, pediatras, professores especializados, etc.


CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO PARA PERTURBAÇÃO DA LEITURA,
SEGUNDO O DSM-IV:

A. O rendimento na leitura, medido através de provas normalizadas de exactidão ou compreensão da leitura, aplicadas individualmente, situa-se substancialmente abaixo do nível esperado para a idade cronológica do sujeito, quociente de inteligência e escolaridade própria para a sua idade.
B. A perturbação do critério A interfere significativamente com o rendimento escolar ou actividade da vida quotidiana que requerem aptidões de leitura.
C. Se estiver presente um défice sensorial, as dificuldade de leitura são excessivas em relação ás que lhe estariam habitualmente associadas.

Ensino e Infantilização

Ensino e infantilização
Marco Loureiro
Escola Secundária de São Pedro da Cova, Gondomar
Ai Portugal, Portugal,
dar-te conselhos é bem pouco original
por favor, não me queiras levar a mal,
ai Portugal, não te deixes assim vestir
Sérgio Godinho
A minha experiência como professor estagiário de Introdução à Filosofia fez-me ver o lirismo que preenche a distância entre as belas teorias pedagógicas enclausuradas em floridos muros disciplinares e os resultados das práticas educativas, que, dizendo-se democráticas e mostrando-se preocupadas com as diferenças sociais, alimentam o défice democrático dos cidadãos e adiam a possibilidade dos mesmos se promoverem socialmente. Passo a descrever algumas das práticas educativas que um estagiário de Filosofia aprende a implementar numa sala de aula.
Sempre que possível, deve-se trazer para a sala de aula filmes, músicas, exemplos de toda a ordem que correspondam aos interesses dos alunos. Nada a opor. Esta posição parece-me bastante sensata em si mesma e baseia-se naquela concepção pedagógica (que considero correcta) segundo a qual o processo de ensino e aprendizagem não deve ser unilateral, isto é, não deve consistir exclusivamente num debitar por parte do professor, concebendo-se o aluno como uma tábua rasa a ser preenchida pela suma sapiência do senhor doutor. As experiências dos alunos podem ser e são factores de enriquecimento de uma aula (nomeadamente em aulas de Filosofia, que se prendem com valores e com raciocínios que podem e devem ser confrontados com as condutas dos alunos). No entanto — e aqui reside o problema — na prática, muitas vezes esta concepção não passa de uma forma de camuflar um defeito enorme do sistema de ensino, e da cultura e sociedade em geral. Passo a explicar. Sucede muitas vezes, temo-o bem, que os professores se demitem (por mais inconscientemente que seja) da sua tarefa de educadores, dado que se utiliza este princípio para não se elevar a fasquia dos conhecimentos e competências, para não se aumentar a diversidade cultural dos alunos, argumentando-se que se deve sempre recorrer às experiências e gostos dos alunos. Isto é uma clara deturpação do princípio. O que o princípio diz é que o professor, em suma, deve interagir com os alunos; não diz que o professor deve limitar-se a responder às experiências e aos gostos dos alunos. Ora, isto é apenas outro unilateralismo pedagógico — só que agora a tábua rasa é o professor. Que fique bem claro: não acho possível haver uma transmissão de conhecimento se não houver um mediador e um mestre, e esse só pode ser o professor. As consequências desta degenerescência é que não vale a pena expor o filme Laranja Mecânica porque é demasiado complexo para a idade dos miúdos, ou que não vale a pena pôr os miúdos a ouvir o Requiem de Mozart porque eles preferem Linkin Park. Se a escola não serve para fomentar o gosto por diversas formas culturais, se não serve para aumentar o leque cultural, estético e ético, se não serve para aprofundar, para analisar... então, pergunto, para que serve?
Outra coisa que nos ensinam é a importância do diálogo. Mais uma vez, a importância do intercâmbio entre professor e aluno. Em si mesmo, correcto. Só que o que a maior parte das vezes acontece é exactamente a infantilização, aquilo a que chamo o falso diálogo, pelo qual o professor pergunta o óbvio fechando a pergunta, ouvindo-se de seguida um uníssono sim ou um uníssono não, ou, paralelamente, quando se quer dar ares profissionais, dirige-se a mesma pergunta oca a um aluno, segundo as boas regras pedagógicas, ouvindo-se o consequente sim ou não, ou um outro vocábulo escasso que toda a gente já está à espera de ouvir. E isto, não no primeiro ciclo, não no segundo ciclo, não no terceiro ciclo, mas no secundário. Vamos todos aprender como se vai para a rua Sésamo?
O mesmo se aplica a actividades levadas para a sala de aula. Nada tenho contra as sopas conceptuais nem contra os textos com espaços em branco para preencher com conceitos. No entanto, o problema é idêntico aos que já expus. Tal como o dever de ter em conta os gostos dos alunos não pode ser pretexto para baixar a fasquia da educação, tal como o dever de dialogar com os alunos não pode ser pretexto para a inexistência de aprofundamento das questões, cerne do verdadeiro e significativo diálogo, o uso de sopas conceptuais e textos com espaço em branco para preencher com conceitos não pode ser um pretexto para não se clarificar o significado dos mesmos e para não se analisar as relações entre eles.
E o mesmo direi do uso de imagens e de esquemas. São óptimos para fixar conceitos e ordenar ideias, mas não podem ser pretexto para não se ler e interpretar textos sob a desculpa de que são muito aborrecidos para os alunos (e a fazer-se, que sejam textos curtos e fáceis). O facto de as imagens ajudarem a fixar melhor a matéria do que a audição ou a leitura isoladas pode e deve ser utilizado pelo professor para a sua tarefa educativa, mas não o deve isentar do trabalho de análise do texto, que no caso da Filosofia, é o principal instrumento de trabalho. De facto, se a aula tiver muitas imagens, possivelmente o aluno irá lembrar-se delas. Mas imaginemos que a aula seja acerca dos valores religiosos; o aluno pode reter imagens de igrejas católicas e pode reter imagens de deuses gregos no Olimpo — mas se não se fizer a devida análise do que é o valor religioso, o que significa o valor religioso, em que medida a religião é uma forma de se responder à angústia do sentido da vida, etc., terá sido a aula bem sucedida? É que se isto acontecer, não se passará do nível do "sabes que começou na A, e a seguir veio o E...", e isto não no primeiro ciclo, não no segundo ciclo, não no terceiro, mas no secundário.
O sacrifício
O que estas deturpações que mencionei têm em comum é o sacrifício de tudo o que se deve fazer para educar realmente — ou seja, alargar os horizontes culturais, alargar os conhecimentos, alargar as competências — em prol do aspecto motivacional. Hoje há uma verdadeira obsessão com a motivação. Coitadinhos dos alunos, não vamos massacrá-los com coisas enfadonhas, com textos maçadores, com análises profundas, bem pelo contrário, vamos ser dinâmicos e florear os minutos da aula com imensas actividades, umas atrás das outras. No entanto, lemos o programa das finalidades do ensino da Filosofia (falo da Filosofia especificamente porque é a minha área), e constatamos o tal lirismo a preencher o vácuo que vai da teoria à prática. Lemos que, sim senhor, é para formar cidadãos com espírito crítico, responsáveis e livres — quando na realidade tudo o que fazemos é adiar a mais que necessária reforma das mentalidades, que, não tenho dúvidas, passa muito pela educação e pela escola. Mentalidades que, num Portugal do século XXI, se caracterizam por um espírito crítico futeboleiro, e portanto, acéfalo, do género "a vaca da vizinha dá mais leite do que a minha"; por uma liberdade desconhecedora de regras e de autonomia moral.
A fábrica social
É claro que todo este meu arrazoado também pode ser considerado lírico. De facto, estou mesmo a ver algumas pessoas a dizerem-me qualquer coisa como isto: "Experimenta levar o Requiem de Mozart para uma sala de aula para veres o que é que te acontece". Ou então, podem dizer que subestimo a importância das perguntas fechadas, podem dizer-me que apesar de as perguntas parecerem óbvias, acontece os alunos dizerem não quando deviam dizer sim. Pois, acredito, mas isto não resolve o problema; apenas mostra a sua dimensão. Quanto às perguntas fechadas, digo delas o mesmo que digo das outras práticas que exemplifiquei: têm o seu lugar, e podem ser usadas, e até acho normal um aluno responder não quando devia responder sim, e aí admito a importância da pergunta fechada como meio de diagnóstico e clarificação básica — mas não é esse o problema. Estou convencido de que o problema não é a compreensão mais imediata das questões envolvidas, mas o seu aprofundamento. É normal que num primeiro contacto com uma matéria nova os alunos possam confundir alguns conceitos básicos, ou que tenham crenças que colidem com a roupagem mais científica de conceitos usados vulgarmente num sentido diferente. O que não é normal é existirem muitos alunos com 15 e 16 anos que se recusam a ler quando solicitados; o que não é normal é existirem muitos alunos do secundário que lêem e escrevem tão bem como eu escrevia quando tinha 8 anos; o que não é normal é que um adolescente não saiba interpretar um texto, que não tenha opinião acerca do mundo que o rodeia; o que não é normal é que um aluno do secundário "estude para os testes", debitando a matéria que tem no caderno e não sentindo qualquer gosto especial pelo saber (qualquer que seja). Estou em crer que uma franja importante da população estudantil que temos no nosso país corresponde a este retrato. E não, não é normal; nem o raciocínio pode ser que eles não têm estruturas. Não sou eu que sou um génio por escrever com menos erros tendo 8 anos de idade, do que muitos com 16 anos — são estes que têm 16 anos que não estão preparados, não por qualquer defeito congénito, mas por causa da fábrica social, que engloba a escola, a cultura, os políticos, as famílias, as instituições.
Os alunos chegam sem qualquer preparação ao secundário, e esperam que no secundário os professores invertam essa situação, quando a única maneira de reparar o problema é reparar a base, que começa no primeiro ciclo. Depois, como é evidente, a dose repete-se em pleno ensino universitário, onde se formam licenciados sem preparação para o mundo do trabalho e sem qualquer bagagem cultural. Junte-se a isto que passámos de um regime salazarista retrógrado e repressor, em que o professor, qual capataz, fustigava os alunos que apelidava não raras vezes de burros, para um sistema no qual uma boa percentagem dos alunos (e estou a falar também de alunos de secundário) desobedece sistematicamente dos professores, prejudica o correcto funcionamento das aulas e não raras vezes passa o limite da boa educação. O que me apraz dizer é que este não é um problema do ensino per se; é um problema de cultura (ou de falta dela). Creio que um dos factores que explicam esta tendência do desrespeito que os alunos têm pelos professores (e note-se, não é preciso disparar pontapés ou socos para desrespeitar e prejudicar uma aula) na sala de aula, e também, note-se, perante os colegas que querem e têm o direito de assistir à aula em boas condições, é a forma cada vez mais irresponsável como as famílias educam os seus filhos. Também no sector mais básico da sociedade, a família, grassa a irresponsabilidade. Nota-se em muitos adolescentes de secundário uma grande lacuna de regras, de consciência cívica, e isto, em larga medida, deve-se à demissão dos pais como educadores. Há uma espécie de novo-riquismo também na educação. Basta dar telemóveis de topo aos putos e pô-los a jogar Sega. A este propósito, lembro uma conversa que tive com uma psicóloga que trabalha numa instituição social. Disse-me ela que conhece muitas crianças que vão para lá apesar de não terem problemas de aprendizagem (a instituição trabalha fundamentalmente com problemas de aprendizagem e problemas familiares) e que ficam lá o dia inteiro, de manhã à noite, comem o pequeno-almoço, o almoço e lancham. Às 20 horas a instituição fecha, portanto têm de jantar em casa com os pais. Segundo ela, algumas dessas crianças dizem que não jantaram, embora as suas famílias não tenham problemas económicos. Mencionou ainda que uma das crianças com quem trabalha disse-lhe que passou o fim-de-semana a jogar Sega, e que a mãe lhe levava as refeições ao quarto, para que continuasse a jogar. Mencionou ainda que conhece uma mãe que sai relativamente cedo do emprego, mas só vai buscar a criança às 20 horas, quando a instituição fecha, e que a tem visto às vezes estacionada em frente da instituição 15 minutos antes das 20, e por lá fica até a instituição fechar; só então vai buscar a criança, quando o pode fazer antes. Penso que este é um dos retratos do país real.
Conclusão
Claro que, além disto, temos um outro país, muito distante do "país real" que vemos todos os dias na televisão, o país do interior, o país pobre, o país dos pais analfabetos, o país do abandono. É difícil pedir a uma franja significativa da população estudantil portuguesa que se interesse pela cultura e pelo saber quando o meio em que vivem é completamente o avesso disto; é estúpido pensar que um filho de um bêbado desnaturado e selvagem, com poucos indícios de civilidade, tenha as mesmas condições para se formar integralmente do que o filho de um licenciado. Não esqueçamos que quando Portugal iniciou o seu processo de alfabetização já os países mais desenvolvidos da Europa olhavam para nós como se vivêssemos na Idade da Pedra. O que é preciso é resgatar os filhos dos analfabetos e iliterados, e este é um processo lento, mas necessário, e requer políticas eficientes. Maria Filomena Mónica faz referência à necessidade de se fazer um estudo acerca de como a origem social determina o acesso às universidades. Apesar de o grande raciocínio que podemos fazer de todo este arrazoado acerca da pedagogia ser o de que a necessidade de Portugal democratizar o ensino e em particular o acesso à universidade acarretou um enorme nivelamento por baixo no que toca à qualidade de ensino, a verdade é que, ainda assim, Portugal tem ainda uma das taxas de abandono escolar mais elevadas e uma das piores taxas de insucesso escolar europeu. É que, por mais que nos custe, somos realmente um país pobre. E a velha tese, aliás conservadora, segundo a qual "quem tem unhas é que toca guitarra" é, no mínimo, para rir. Sempre que ouço alguém a dizer esta, a única dúvida que me resta é saber em que casa de fados terá nascido. A grande ironia desta história é que neste mundo que temos (e, caros jovens colegas licenciados, cada vez menos a nossos pés), o crescimento económico que inevitavelmente precisamos, se é que queremos sair do fosso e competir com um mundo cada vez mais agressivo, implica um enorme investimento na educação, investimento que só pode funcionar se abandonarmos o modelo vigente, que é o da democratização pelo menor denominador comum. E investir não se trata apenas de dinheiro, mas de visão. Uma das críticas que às vezes é frequente fazer-se ao nosso sistema é que somos um país de doutores, isto é, todo o ensino é orientado para o ensino universitário. Apesar de haver uma cultura bacoca de adulação dos doutorzinhos de toga (na boa linha da cultura da subserviência salazarista), a verdade é que os números não enganam. Portugal precisa de mais gente com formação superior do que aquela que tem. Por outro lado, também é necessário investir nas escolas profissionais, como via alternativa a quem não quer seguir um ensino universitário e prefere uma formação técnica mais prática e mais directamente orientada para o mercado de trabalho. Mas, seja para aumentar a qualidade do ensino superior ou para aumentar a qualidade do ensino técnico-profissional, a chave, penso, tem de ser esta: para sermos competitivos, temos de formar gente competente, e para formarmos gente competente temos de ter um ensino rico em competências, que comece desde as bases. E temos de ser exigentes desde o primeiro ciclo, se não queremos desbaratar o único recurso plausível que temos: as pessoas.

Entrevista a Desidério Murcho - Ensinar a Pensar



Ensinar a pensar
André Barata
Desidério Murcho coordena, com João Branquinho, a edição desta primeira "Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos". Uma obra precursora que dá a conhecer ao público português a linguagem com que hoje em dia se escreve e discute Filosofia.
Jovem filósofo, tradutor e articulista, 36 anos, Desidério Murcho é autor de um considerável conjunto de artigos no domínio dos estudos lógico-filosóficos. Destaca-se, porém, o seu excepcional trabalho na divulgação e promoção de uma maneira de fazer Filosofia que vai ganhando adeptos e apoio institucional em Portugal: a que aposta na vertente analítica, no trabalho em comunidade e no rigor lógico e argumentativo.
E fá-lo em diferentes frentes: co-dirigindo a colecção "Filosofia Aberta" da Gradiva, editando a revista "Disputatio", bem como mantendo um "site" de qualidade reconhecida, a "Crítica", onde é possível discutir Filosofia agradável e seriamente. "Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos", coordenada em parceria com João Branquinho, é o seu mais recente trabalho, coligindo contributos de uma vasta equipa de investigadores.
Qual é o papel desta enciclopédia para os estudos filosóficos em Portugal?
É importante por vários motivos. Trata-se de um esforço interdisciplinar, que envolveu pessoas com formações diferenciadas: linguistas, matemáticos, especialistas em teoria da computação, além de filósofos. É uma obra que procura divulgar a Filosofia contemporânea mais recente, em Portugal infelizmente quase de todo desconhecida. Em terceiro lugar, reúne especialistas nacionais e estrangeiros.
Há objectivos a alcançar?
Estão ligados aos três aspectos que destaquei. Um dos objectivos é procurar que a comunidade filosófica portuguesa se integre naturalmente na comunidade filosófica internacional. Depois, tornar conhecida uma área da Filosofia contemporânea quase desconhecida no nosso país e também abrir a possibilidade de um trabalho de cooperação interdisciplinar.
Existe uma certa opção filosófica que se reconhece e se quer reconhecível neste livro, quando fala de Filosofia contemporânea, uma opção pela Filosofia de tradição analítica, ou, como bem expressa o título, lógico-filosófica. O que é que essa opção traz de novo para os investigadores e para os estudantes?
Se a Filosofia contemporânea no seu todo é pouco estudada em Portugal, a analítica é um universo por descobrir. Esta enciclopédia pode ajudar a desvendá-lo, mas apenas no que respeita aos estudos lógico-filosóficos. Mesmo deixando de fora a ética, a estética, a Filosofia da religião e a Filosofia política, o livro já é enorme! Seria excelente, se surgissem outras obras deste género que dessem a conhecer essas áreas que tivemos de deixar de fora.
Que temas foram contemplados?
Os estudos lógico-filosóficos englobam um conjunto relativamente heterogéneo de problemas filosóficos que cortam diagonalmente várias disciplinas: Filosofia da Linguagem, Filosofia da Lógica, Lógica Filosófica, Metafísica e Epistemologia são algumas das mais óbvias. O que unifica a área é um uso intenso de instrumentos lógicos.
Em que medida esses instrumentos podem ter aplicação em áreas como a Metafísica ou a Epistemologia?
No caso da Metafísica, desde a fundação da disciplina, com Aristóteles, que a lógica sempre desempenhou um papel importante. Por exemplo, na discussão dos problemas da identidade (serei hoje a mesma pessoa que era há 20 anos?) ou na discussão dos problemas levantados pelo pensamento modal (o que significa dizer que eu poderia não ter nascido?). No caso da Epistemologia, temos um problema de carácter lógico no que respeita à indução: como podemos explicar este tipo de raciocínio? Em ambos os casos, a lógica ajuda-nos a encontrar melhores respostas, a refinar teorias e a discutir argumentos.
Como vê o trabalho interdisciplinar na Filosofia?
A Filosofia é um lugar por excelência de interdisciplinaridade. Aliás, penso que um dos problemas que temos na cultura portuguesa é uma certa incapacidade para ver a floresta, porque o sistema de ensino está vocacionado para fazer as pessoas repetirem sem pensar uma lista de coisas sobre as árvores. Sempre que começamos a discutir as grandes ideias, os grandes problemas, percebemos que precisamos de convocar várias áreas.
Quer dizer que o nosso ensino se baseia na erudição e na memória, em vez de ensinar a pensar?
Infelizmente, isso é verdade. E é isso que explica a relativa inexistência de grandes artistas, cientistas ou filósofos portugueses. Não porque os jovens sejam menos inteligentes ou talentosos do que os seus colegas dos outros países, mas porque em Portugal os talentosos são afastados do sistema de ensino e da cultura, em vez de serem estimulados.
Nos últimos anos, o ensino da Filosofia em Portugal tem prestado maior atenção à Filosofia Analítica, em contraste com um mero ensino de História da Filosofia dominante até há bem pouco tempo. Considera possível conciliar abordagens tão diferentes?
Há duas coisas completamente diferentes: a Filosofia e o ensino da Filosofia. E, no que respeita ao ensino, tanto faz ela ser analítica ou não. Se for um ensino de qualidade, tem de dar ao estudante a capacidade para pensar por si mesmo e para ter uma atitude crítica em relação às ideias dos filósofos. Limitarmo-nos a repetir o que disse Quine é tão tolo como limitarmo-nos a repetir o que disse Heidegger.
Em todo o caso, parece estar em jogo a própria maneira de fazer Filosofia, uma metodologia mais científica em contraste com uma produção de tom literário: a primeira, seguindo o modelo do artigo pequeno com muita análise lógica; a segunda, fazendo-se com ensaios longos, em regra, de teor hermenêutico. Duas maneiras tão distintas podem ser ambas Filosofia?
Basta ler a obra de Nagel, Nozick, Swinburne ou Singer para perceber que não é uma "metodologia científica" o que caracteriza a Filosofia analítica. Por outro lado, a Filosofia tem sido tanta coisa ao longo dos séculos que me parece inútil saber o que ela realmente é. O que é realmente a arte? O que é realmente a ciência? Neste momento, em Portugal, o que interessa é criar condições para que os nossos estudantes mais talentosos possam desenvolver a Filosofia no nosso país, seja ela qual for, desde que seja de qualidade, aberta à discussão e em contacto com o que se faz no resto do mundo.
Nesta obra apostou-se em autores portugueses, sobretudo jovens filósofos que se encontram ainda a preparar estudos doutorais e de mestrado. Podemos falar de uma nova escola de Filosofia?
Há a tentativa de constituir uma comunidade, condição sem a qual não pode haver estudo sério em nenhuma área. Mas não há qualquer escola. Os autores desta enciclopédia têm orientações muito diversificadas. A propósito, há uma grande injustiça que gostava de reparar: Francisco Gonçalves ajudou-nos muito na fase de compilação de artigos, e o seu nome não é referido no prefácio.
Paralelamente a esta obra, Desidério Murcho tem desenvolvido um intenso trabalho de divulgação e promoção da Filosofia através da criação de diversos "sites" de qualidade. Que resultados tem tido?
Surpreendentes. Ao contrário do que os nossos simpáticos publicistas nos querem fazer crer, o mundo não é só feito de pessoas tolas que bebem Coca-Cola e aspiram a comprar um BMW. Há também pessoas que gostam de discutir ideias, estudar e conhecer melhor este pedaço de universo em que por acaso nos encontramos. A "Crítica" recebe mais de mil visitas por semana, o que é impressionante, se tivermos em conta que se trata de um "site" não comercial, em língua portuguesa e dedicado sobretudo à Filosofia.

Revista Critica On-Line

Pensar e Viver


Aprender a pensar bem é preciso. Aprender a ser um pensador responsável, cuja característica essencial é a capacidade de formular bons juízos, é imprescindível para se poder orientar a vida de uma forma mais criteriosa. Mas isso é possível? Como fazer para aprender e ensinar a pensar bem? Essa deveria ser uma das principais preocupações de todo educador e, enquanto professora de Filosofia, sempre foi o meu maior desafio. O caminho mais promissor que encontrei para enfrentar tal problema é o desenvolvimento do projeto educacional que podemos entrever no Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Por quê? Bem, porque esse é um programa que tem como um dos objetivos norteadores justamente o exercício do pensar, visando sua competência e autonomia, ou seja, a sua excelência. O conjunto da teoria de Lipman a respeito da educação repousa sobre os seguintes pressupostos: 1) os objetivos da escola devem estar voltados para o desenvolvimento do pensamento; 2) o pensar é passível de ser desenvolvido em direção a sua excelência, quando submetido à investigação filosófica e exercitado na prática dessa investigação em comunidade; pensar bem é não só uma característica da prática filosófica como também um resultado dela. A partir desses pressupostos, Lipman elaborou uma proposta educacional que permite envolver alunos e professores em diálogos investigativos de caráter filosófico.

Aqui, pretendo discutir alguns dos aspectos das relações que Lipman estabelece entre o pensamento e a prática filosófica, orientando-me pela análise mais aproximada dessas noções. O processo do pensamento é próprio da "natureza humana", ou seja, o homem naturalmente pensa. Porém, segundo Lipman, isto não pode significar que tal processo não tenha condições de ser aperfeiçoado por meio de procedimentos adequados. Desse modo, em sua obra O Pensar na Educação, observamos ser um de seus objetivos especificar os elementos que podem ser considerados como componentes constitutivos do pensar excelente, ou de ordem superior, e quais são as condições de possibilidade de seu desenvolvimento.

Trata-se de uma abordagem normativa e não descritiva, ou seja, que enfoca o pensamento sob o ponto de vista de como deveria ser e não de como ele de fato ocorre; a discussão sobre o pensamento comum tem seu lugar apenas em função de uma possível distinção avaliativa em confronto com a excelência do pensar.

O pensar excelente, de ordem elevada, é caracterizado como uma associação dos aspectos crítico e criativo do pensamento, que precisam ser entendidos como aspectos que se complementam no ato de pensar bem; além disso, o pensar excelente é o que avalia seu próprio desempenho. Nas palavras de Lipman:

"Pensamento complexo inclui o pensamento recursivo, o pensamento metacognitivo, o pensar autocorretivo, e todas aquelas formas de pensamento que envolvem a reflexão sobre sua própria metodologia, enquanto examinam, ao mesmo tempo, seu tema principal."

Lipman aponta para a discussão detalhada dos aspectos crítico e criativo nas partes II e III da obra acima mencionada. Vejamos como ele os caracteriza.

A definição de pensamento crítico está baseada em sua funcionalidade , pois ela se anuncia atrelada aos produtos ou conseqüências dessa modalidade do pensar que são os bons juízos. Por essa razão, precisamos examinar qual é a possível relação entre a faculdade de julgar e a qualidade do pensamento crítico. Para Lipman, é crítico o pensamento que possibilita a formulação de bons juízos porque se fundamenta em critérios, é autocorretivo, e considera o contexto.

O autor associa os termos crítico e critério por terem ambos uma etimologia comum. E relaciona critérios com juízos porque os primeiros podem ser definidos como princípios utilizados para o ajuizamento. O pensar crítico é habilidoso e não pode ter seu desempenho avaliado sem a concorrência de critérios para tanto. Por isso, o pensar crítico é aquele que se pauta por critérios e que busca critérios para sua própria apreciação, isto é, está constantemente buscando a correção de suas falhas, tendo como orientação metodológica máxima (megacritério) a busca da verdade. Desse modo, ele pode ser considerado um pensar que se apóia em fundamentos, tem uma estrutura e também recursos que lhe conferem força para sua defesa e autocorreção.

Lipman inicia sua reflexão sobre o pensar criativo comparando-o com as características do pensar crítico. Evidentemente, busca esclarecer que não concebe o pensar criativo como oposto ou contendo elementos distintos do pensar crítico. Para ele, a diferença se encontra na maneira como os dois aspectos, ou componentes do pensar excelente, estão oganizados porque o pensar criativo conduz ao ajuizamento, é orientado pelo contexto, é autotranscendente, e sensível a critérios contrastantes.

Na seqüência dessa definição, Lipman nos apresenta o seguinte quadro:

Pensar Crítico:

a) tem como megacritério a verdade
b) conduz ao juízo
c) é orientado por critérios singulares
d) é autocorretivo
e) é sensível ao contexto


Pensar Criativo:

a) tem como megacritério o significado
b) conduz ao juízo
c) é sensível a critérios contrastantes
d) é autotranscendente
e) é orientado pelo contexto (holístico)

É importante observar que a comparação entre as definições não determina um contraste, ou seja, não significa que o pensamento criativo não seja sensível à verdade, livre de juízos críticos ou que ele seja irracional. O que o autor pretende com essa contraposição é ressaltar as características principais de dois aspectos de um mesmo ato, isto é, o ato de pensar bem. Não podemos compreender essas noções como duas ocorrências estanques, pois elas configuram duas instâncias do processo do pensamento.

De qualquer modo, para compreender o pensar criativo, um caminho seguro é examinar de perto o fato de que ele é orientado pelo contexto, enquanto o pensar crítico é sensível ao contexto. O que essa diferença pode significar? Lipman estabelece a seguinte comparação:

"Podemos esperar que o pensar crítico e o criativo sejam orientados pela qualidade universal da situação específica da investigação e sejam sensíveis ao perfil e configuração daquela situação. Mas o pensar crítico fará isto buscando critérios e conceitos através dos quais possa orientar o rumo da investigação. O pensar criativo, por outro lado, será sensível à maneira como a qualidade universal incorpora valores e significados e estará nas mãos de poderosos esquemas que tentarão fazer com que o pensar siga por esta ou aquela direção."

O pensar criativo se organiza na perspectiva dos significados que qualificam as situações investigativas, surgindo na tensão que se estabelece no contraste entre os critérios, orientando-se em direção a sínteses criativas, procurando transcender a si mesmo por meio da autocrítica que é parte constitutiva do processo de investigação. Criatividade e racionalidade são partes integrantes do processo do bom pensamento; em outras palavras, são os eixos do pensar de ordem superior.

A partir dessas considerações, podemos refletir um pouco sobre as características da prática filosófica proposta por Lipman. Antes de mais nada, não devemos confundi-la com a filosofia árida como é comumente vista nas universidades, pois "a filosofia para crianças é uma intervenção que objetiva conseguir com que os próprios alunos filosofem". Isto porque, para Lipman, pensar filosoficamente implica aprender a pensar sobre um assunto de tal forma que, simultaneamente, aprende-se a pensar autocrítica e autocorretivamente sobre o próprio processo de pensar. Em outras palavras, a filosofia nos conduz a um pensamento constantemente investigativo, pois ela é "investigação conceitual, que é a investigação na sua forma mais pura e essencial", ela se constitui tradicionalmente como a genuína busca da verdade.

Quando abordamos o pensamento nessa perspectiva, não podemos considerar qualquer pensamento como pensamento. Pensar filosoficamente é ter o "raciocínio guiado pelo ideal de racionalidade, e isto, para o filósofo, não é meramente pensamento, mas pensamento melhor". Para melhorar a qualidade do nosso pensamento e a de nossos alunos, é preciso desenvolver um pensar desse tipo e, para tanto, é necessário promovê-lo em comunidade. Lipman nos orienta nessa direção:

"A filosofia impõe que a classe se converta numa comunidade de investigação, onde estudantes e professores possam conversar como pessoas e como membros da mesma comunidade; onde possam ler juntos, apossar-se de idéias conjuntamente, construir sobre as idéias dos outros; onde possam pensar independentemente, procurar razões para seus pontos de vista, explorar suas pressuposições; e possam trazer para suas vidas uma nova percepção de o que é descobrir, inventar, interpretar e criticar."

Um pensamento que se exercita desse modo exige a presença dos aspectos crítico e criativo, o que me parece permitir a conclusão de que o pensar filosófico coincide com o bem pensar e legitima a proposta de envolver alunos e professores nesse tipo de exercício.

Friday, October 06, 2006

Projecto de um Mestre


Não me basta o professor honesto e cumpridor dos seus deveres; a sua norma é burocrática e vejo-o como pouco mais fazendo do que exercer a sua profissão; estou pronto a conceder-lhe todas as qualidades, uma relativa inteligência e aquele saber que lhe assegura superioridade ante a classe; acho-o digno dos louvores oficiais e das atenções das pessoas mais sérias; creio mesmo que tal distinção foi expressamente criada para ele e seus pares. De resto, é sempre possível a comparação com tipos inferiores de humanidade; e ante eles o professor exemplar aparece cheio de mérito. Simplesmente, notaremos que o ser mestre não é de modo algum um emprego e que a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes; ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo; e o que importa, no seu juízo final, não é a ideia que fazem dele os homens do seu tempo; o que verdadeiramente há-de pesar na balança é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.

A sua contribuição terá sido mínima se o não moveu a tomar o caminho de mestre um imenso amor da humanidade e a clara inteligência dos destinos a que o espírito o chama; errou o que se fez professor e desconfia dos homens, se defende deles, evita ir ao seu encontro de coração aberto, paga falta com falta e se mantém na moral da luta; esse jamais tornará melhores os seus alunos; poderão ser excelentes as palavras que profere; mas o moço que o escuta vai rindo por dentro porque só o exemplo o abala. Outros há que fazem da marcha do homem sobre a Terra uma estranha concepção; vêem-no girando perpetuamente nos batidos caminhos; e, julgando o mundo por si, não descobrem em volta mais que uma eterna condenação à maldade, à cegueira, à miséria; bem no fundo da alma nenhuma luz que os alumie e solicite; porque não acreditam em progresso nenhuma vontade de melhorar; são os que troçam daquilo a que chamam «pedagogia moderna»; são os que se riem de certos loucos que pensam o contrário.

Ora o mestre não se fez para rir; é de facto um mestre aquele de que os outros se riem, aquele de que troçam todos os prudentes e bem estabelecidos; pertence-lhe ser extravagante, defender os ideais absurdos, acreditar num futuro de generosidade e justiça, despojar-se ele próprio de comodidades e de bens, viver incerta vida, ser junto dos irmãos homens e da irmã Natureza inteligência e piedade; a ninguém terá rancor, saberá compreender todas as cóleras e todos os desprezos, pagará o mal com o bem, num esforço obstinado para que o ódio desapareça do mundo; não verá no aluno um inimigo natural, mas o mais belo dom que lhe poderiam conceder; perante ele e os outros nenhum desejo de domínio; o mestre é o homem que não manda; aconselha e canaliza, apazigua e abranda; não é a palavra que incendeia, é a palavra que faz renascer o canto alegre do pastor depois da tempestade; não o interessa vencer, nem ficar em boa posição; tornar alguém melhor – eis todo o seu programa; para si mesmo, a dádiva continua, a humildade e o amor do próximo.

Para que me fique inteira esta figura do professor hei-de juntar-lhe uma curiosidade universal, uma helénica elasticidade e juventude espiritual; não o quero especialista, porque a sua missão não está em transmitir uma ciência; essa, ou há-de o aluno aprendê-la ou não será; para ser homem precisa o moço de um mestre; sozinho, numa ilha sozinha, poderia ser um bom zoólogo; para tornar-se pessoa precisa do insistente contacto de pessoas, de homens que amem a vida e não apenas a escultura ou a física. Por aí mesmo dará o mestre boa prova da têmpera da sua alma; porque o fraco e o baixo dificilmente se conservam em não especialismo; a cada passo os tentam o interesse ou o descanso. Há-de pois ter o espírito aberto a todas as correntes, nau pronta a sulcar todos os mares; mais do que a ninguém compete-lhe ter uma ideia do mundo tão perfeita quanto possível; como o havemos de imaginar completamente ignorante neste ou naquele domínio? Esta exigência lhe assegura uma vida de trabalho, horas todas ocupadas e férteis e contínuos projectos; por consequência a mocidade, o entusiasmo e a alegria que requer a missão pedagógica:

Considerações
- Silva, Agostinho da